Nasceu na Madeira? Sim, sou madeirense de gema, mas já estou em Lisboa há quase 155 sete anos. Quais são as suas memórias gastronómicas mais antigas? A cozinha da mãe, da avó. Se calhar os meus filhos já vão ter a memória da cozinha do pai. A cozinha madeirense, como quase todas as cozinhas regionais, anda quase sempre à roda do mesmo, de uma cozinha muito popular. Gosto sempre de falar da cozinha da Madeira e do Porto Santo, de incluir o Porto Santo, porque as pessoa às vezes se esquecem. Tenho a memória do espada (peixe). Na nossa casa existia sempre muito peixe. Eu morava no Funchal, ao pé do mercado, e comprava-se o peixe fresco todos os dias. Não se guardava no frigorífico. Trazíamos o atum, o espada, o chicharro, a cavala. Como é que preparavam esses peixes ? Hoje em dia manuseia-se muito pouco o peixe, está na moda o peixe cru, as meias cozeduras ou cozeduras muito suaves. Antigamente não. Tinha muito a ver com a salubridade e a protecção que as pessoas tinham de ter em relação a alguma coisa que estivesse mal. O atum, por exemplo, era muito cozido e tiravam o sangue antes de o cozinhar. Era todo demasiado cozinhado, havia muito escabeche com muito vinagre que também ajudava a dar mais longevidade aos produtos. Então podemos dizer que hoje os produtos são mais respeitados? Claramente. A grande evolução dá-se nesse sentido. O produto hoje em dia é valorizado pela frescura e pelo pouco manuseamento. Fazemos isso com molhos e guarnições, mas alguns produtos não podem ser muito manuseados, para manter a sua essência. O que considera como identificativo da cozinha madeirense? Há uma personalidade bem vincada na cozinha madeirense. Em primeiro lugar, o produto. Isso distingue-a de todas as cozinhas regionais. A seguir vem o receituário. O receituário madeirense não é muito rico. No entanto, se analisarmos toda a cozinha portuguesa, vemos que é rica – sendo o produto o mais importante. Gosto muito do atum com molho vilão, que também é usado com cavalas. Temos as lapas, a carne em vinha-d’alhos, os milhos, que existem desde sempre. Os italianos chamam-lhe polenta, nós chamamos milhos. Comemos ao almoço e ao jantar, frio ou frito. Mas é preparado exactamente da mesma maneira dos italianos. É um prato que mesmo hoje toda a gente continua a comer pelo menos uma vez por semana. Temos a espetada, um ícone da nossa gastronomia. Alguns pratos desapareceram. A maioria das grandes receitas do receituário da Madeira aparece no final do século XIX, início do século XX. Na casa das famílias mais burguesas a cozinha ficou guardada, escondida. Existiam muitos segredos e a partilha de receitas é mais recente. Existe também uma influência conventual na doçaria. Temos o bolo de mel, a queijada da Madeira, as broas, as rosquilhas. Há de facto um receituário interessante e diferenciado nessa área. Temos um produto muito bom e interessante que é o cuscuz. Hoje em dia penso que só a norte (no continente) se produz, mas na Madeira continua a produzir-se. E o que é esse cuscuz? É um produto que ficou da influência árabe, feito com farinha de trigo com um cuscuzeiro, que se mantém há séculos. Tem todo um processo muito interessante. Por exemplo, o cozido madeirense é acompanhado com cuscuz e não com arroz. É muito usado como acompanhamento e com tomilho, que é uma erva muito presente na cozinha madeirense, tal como a salsa – são duas ervas aromáticas muito consensuais na nossa cozinha. Nos últimos anos, o bolo do caco generalizou-se muito no continente, mas nem sempre com qualidade. Onde é que se pode comer bom bolo do caco? Para mim, o melhor é o de Porto Santo. Aliás, o Porto Santo tem alguns produtos excepcionais porque a sua exposição ao mar lhes confere um sabor especial. As uvas, a melancia, têm uma qualidade muito boa e quase ninguém fala disso. Tem o bolo do caco que é mais alto, maior e não leva batata-doce. Tem a escarpada, um pão de origem árabe feito com farinha de milho e usado como acompanhamento, mas está-se a perder. E há ainda o atum-gaiato (mais pequeno) que é seco, inteiro, ao sol. A exposição da Madeira ao turismo, desde o século XIX, alterou a cozinha madeirense? Teve influência, nem sempre para melhor. Fizeram-se algumas alterações que não se deviam ter feito, mas é a minha opinião. Muitos visitantes gostam da nossa cozinha regional, mas nem todos, e fizeram-se alterações para agradar aos turistas. Isso acontece em outros locais, como no Algarve, por exemplo. Mas também se alterou porque os contactos promovem a cozinha. Quem vem à Madeira quer provar a espetada, as lapas, o peixe-espada. Andam sempre um pouco à roda destes três produtos, que são mais comerciais. (.) Porto Santo tem alguns produtos excepcionais porque a sua exposição ao mar lhes confere um sabor especial. Mas a cozinha da Madeira não se resume a três produtos? Não. Mesmo sendo uma ilha pequena, tem muita variedade de produtos. Como a fruta. Aí a Madeira marca muito a diferença. Consegue ter fruta com uma maturação completamente diferente de outros locais. Não são muito doces, têm uma acidez muito própria que é uma marca distintiva. Temos pelo menos umas dez variedades de maçãs (que chamamos quase sempre pêros) que são muito interessantes e têm nomes engraçados, como o pêro focinho- -de-rato, o pêro-calhau ou a maçã cara-de-dama. Temos os mangos (mangas) madeirenses excelentes, temos as piteiras, o araçal, o maracujá-banana. No meu quintal tinha papaias e abacates, por exemplo. Ainda hoje adoro uma coisa que é comum na Madeira: abacate com açúcar. E bananas, claro. A fruta é muito presente e tem uma qualidade excelente. A fruta e o peixe marcam a diferença.
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